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E agora? Como o Coronavírus pode Afetar seus Contratos?

27 de março de 2020

O avanço do coronavírus (“COVID-19”) preocupa as autoridades de saúde pública em todo o mundo. Ainda antes de a Organização Mundial de Saúde decretar estado de pandemia global, o epicentro do surto iniciado na China já havia se deslocado para o ocidente. No Brasil, os casos diagnosticados aumentam exponencialmente a cada dia, com consequências econômicas imediatas e mediatas imprevisíveis.

Nesse cenário volátil, os impactos do COVID-19 já se fazem sentir também nas relações entre empresas. O incremento das restrições à circulação de pessoas e mercadorias nos centros urbanos, a incerteza sobre as medidas a serem adotadas pelos governos e a redução do poder de consumo geral da sociedade devem dificultar, quando não impossibilitar, o cumprimento de obrigações assumidas por sociedade em todos os ramos de negócios. Os contratos comerciais atualmente vigentes foram negociados e celebrados, afinal, considerando certa disponibilidade de capital, bens, serviços e pessoal que podem simplesmente não existir mais.  

Sabemos que a legislação brasileira preceitua que eventos supervenientes, inevitáveis e imprevisíveis podem, em certos casos, caracterizar eventos de força maior aptos a afastar a responsabilidade das partes pelo descumprimento de obrigações. Se o panorama traçado pelo COVID-19 reunir tais características, incidiria automaticamente a regra geral do artigo 393 do Código Civil para que devedores não respondam pelos prejuízos resultantes de seus descumprimentos? Será possível às empresas afetadas se socorrer do instituto jurídico da força maior para excluir eventual responsabilização pelo descumprimento de obrigações contratuais? A resposta em ambos os casos é: depende. A caracterização ou não de um evento de força maior deverá ser analisada individualmente, já que a solução variará de acordo com o fato, a conduta das partes, o que dispuser o contrato, bem como com o regime jurídico aplicável ao mesmo (se consumerista ou comercial).

Inicialmente, para que um evento de força maior se caracterize, o evento e a conduta das partes devem preencher certos requisitos inequívocos. Um eventual Juiz analisará evidências não só das mencionadas superveniência, inevitabilidade e imprevisibilidade do evento em si; mas, também, de que o mesmo teve efeitos reais na capacidade do inadimplente cumprir a sua obrigação (nexo causal), e de que este não aumentou culposamente o impacto do evento, mas, ao contrário, tentou de boa-fé reparar ou mitigar seus efeitos.

No caso do COVID-19, portanto, não bastará que uma hipotética empresa contratada para prestar serviços logísticos prove que a pandemia afetou sua capacidade de armazenar ou transportar mercadorias. Será necessário atestar que o referido armazenamento ou transporte se tornou impossível sem culpa sua, seja porque seu centro de distribuição não reúne mais condições de funcionar, seja porque estradas foram fechadas; e que esta tentou encontrar saídas para contornar tal situação, sem sucesso. Destaque-se que falamos em impossibilidade. Caso o serviço apenas tenha se tornado mais custoso, a discussão poderia caminhar para onerosidade excessiva, mas não caberia exclusão da responsabilidade por força maior.

Ainda que o evento e a conduta das partes reúnam todas as características acima, a aplicação do instituto da força maior ficará sujeita, ainda, à consulta e interpretação do contrato celebrado entre as partes. Isso porque o mesmo artigo 393 do Código Civil excepciona a regra geral mencionada, permitindo às partes a dispor em sentido diverso; inclusive lhes sendo permitido, acrescente-se, impor a uma delas os ônus decorrentes de eventos de força maior, ou dividi-los desigualmente entre ambas.

A referida exceção é corolário do princípio geral pacta sunt servanda, que se traduz na autorização do ordenamento jurídico para que as partes negociem, contratem e façam lei entre si. Essa liberdade foi fortalecida com a recente introdução da lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), que acresceu disposições ao Código Civil para esclarecer que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada” (artigo 421-A, inciso II) nas relações contratuais privadas.

O princípio pacta sunt servanda encontrará guarida mais ampla nos contratos comerciais, ou seja, naqueles celebrados por empresas em decorrência das suas atividades mercantis, movidas pela busca de lucro. Desde que o objeto contratado seja lícito, possível e determinável, será dada liberdade às empresas para dispor sobre seus direitos patrimoniais na consecução de seus objetos sociais, podendo inclusive acordar diferentes matrizes de riscos e responsabilidades ao celebrarem contratos com partes equivalentes, sem hipossuficiência. A presunção é de que as partes calcularam adequadamente os riscos envolvidos na sua relação sinalagmática, podendo ser criativas ao negociar fatores imponderáveis.

A lei permite, por exemplo, que uma determinada contratada, ao celebrar um contrato com terceiros, se obrigue durante um certo período por prejuízos oriundos de determinados eventos imprevisíveis, precificando tais riscos de maneira lucrativa. No mesmo sentido, é comum que a regra geral do Código Civil seja afastada em contratos de construção de grandes obras em regime de turn key, nos quais o contratado usualmente se obriga expressamente pelo risco de eventos geológicos, hídricos e climáticos que poderiam caracterizar força maior em outras contratações.

Retomando nosso exemplo, se a mesma prestadora de serviços de logística entender que tem condições de arcar com o risco causado pelo alastramento do COVID-19, poderia perfeitamente celebrar contratos – presumidamente cobrando mais por seus serviços – assumindo que indenizará o contratante caso descumpra suas obrigações por ter tido seu centro de distribuição bloqueado. É de se assumir, portanto, que empresas que detenham soluções criativas e capacidade técnica diferenciada podem se destacar nesse cenário de risco.

Deve-se atentar ao regime jurídico do contrato, contudo, já que as partes não poderão negociar a flexibilização da regra geral de força maior livremente em contratos consumeristas, por exemplo. Se os contratantes se enquadrarem nos conceitos típicos de fornecedor e consumidor do Código de Defesa do Consumidor, as partes só poderão fugir da regra geral se em benefício do consumidor. É dizer que o fornecedor poderá se obrigar a responder por prejuízos causados ao consumidor por eventos de força maior, mas que o contrário não é verdade: o artigo 51, III, do Código de Defesa do Consumidor estabelece que serão consideradas abusivas e nulas de pleno direito cláusulas que transfiram responsabilidades do fornecedor para terceiros.

Em conclusão, se o evento e a conduta das partes preencherem os requisitos necessários para caracterizar um evento de força maior, e o contrato entre as partes for silente, a regra geral do Código Civil sempre incidirá para afastar a responsabilidade civil do devedor por descumprimento causado por força maior. Será lícito às partes em determinados casos – marcadamente em contrato comerciais –, dispor de maneira diferente, prevalecendo a alocação de riscos prevista no negócio jurídico em homenagem ao princípio pacta sunt servanda.

Como na saúde pública, também nos negócios: o COVID-19 não deve inspirar pânico, mas cuidados. Recomendamos que as empresas afetadas realizem uma análise criteriosa dos seus contratos vigentes para verificar o seu eventual nível de exposição em cada caso, privilegiando a previsibilidade. A atenção deve ser redobrada quanto a contratos em negociação, nos quais o cenário de pandemia causado pelo COVID-19 pode e deve ser regulado por meio de previsões específicas. Pode ser o caso de reforçar a aplicabilidade de cláusulas de força maior, protegendo os interesses das empresas contratantes; ou de mitigar os seus efeitos e repartir o risco entre as partes, no caso das contratadas.

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Adriano Rawa Melquiades dos Santos Nery

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